sábado, 9 de outubro de 2004

- As flores falam - Parte Final -

    Dezessete de julho de 1994, domingo, três da tarde.
    - Gu, sua mãe já disse que dentro de casa não é lugar de jogar bola.
    - Mas, pai, tá chovendo. Não posso sair pra brincar. Onde que eu vou brincar? Só aqui mesmo. No meu quarto não tem espaço.
    - E seus outros brinquedos? Não servem pra nada?
    - Ah, brincar com eles não tem graça e meus amigos estão viajando de férias.
    Aquele mês a família não pôde sair de férias em julho. Alberto acabara de ser promovido na empresa e era fortemente recomendado a adiar suas férias em um mês, pois seu novo cargo exigia muita responsabilidade e no momento não havia outra pessoa na firma que tivesse confiança do chefe suficiente para substituir Alberto mesmo que por poucas semanas.
    Entre um chute e um olé, Gustavo chuta a bola contra a parede que sua mãe pendura seus trabalhos de arte. Vários quadros vão ao chão, mas apenas um que continha uma flor feita de pequenos recortes de papel branco tem a moldura quebrada. O som dos cacos alerta sua mãe na cozinha, quem vem depressa verificar o prejuízo.
    - Ai, Gustavo! Quantas vezes eu já falei pra não jogar bola aqui dentro.
    - Ah, mãe.
    - Ah, nada! Já pro seu quarto. Tá de castigo. Olha só! Você quebrou o quadro com o mosaico.
    - Desculpa, mãe. – lamenta Gustavo com quase uma cara de choro.
    - Tudo bem, filho. Um dia mamãe manda consertar. Mas você ainda está de castigo.
    Semanas se passaram, e uma pneumonia da irmã de Neuza, a fez esquecer completamente se algum quadro estava ou não com a moldura quebrada. O mosaico de Gustavo ficou ali, em algum lugar entre o sofá da sala, e a estante dos livros de Neuza.

* * *

    Oito de dezembro de 1994, quinta-feira, oito da noite.
    - Oi, Neuza! É Edna. Não sei se a secretária-eletrônica já está gravando a mensagem, mas de qualquer forma eu ligo mais tarde. Estou ligando pra saber se vai ter a passeata mesmo amanhã com essa chuva toda. Tá um temporal horroroso, e parece que não vai embora tão cedo. Mas se você confirmar, nós aqui de casa iremos. Beijo.
    Neuza não podia atender ao telefone. Estava completamente dopada pelos sedativos que o médico receitara. Ela não podia prever como a proximidade do aniversário de Gustavo iria afetá-la a ponto de não ter ânimo de ir à passeata que estivera planejando. É óbvio que a tempestade contribuíra ao quadro de desânimo de Neuza. Essa chuva praticamente condenara qualquer plano de passeata.
    Sob tamanha derrota e infelicidade tudo que Neuza conseguia fazer era rezar. Ela que nunca foi muito religiosa passou a ser desde o desaparecimento de Gustavo. Depois de quase dois meses, sem nenhuma notícia e reconhecendo a forma como ele foi levado, a pobre mãe praticamente se convencera do destino do filho. Ela acreditava desacreditando que Gustavo já havia partido. Tudo que ela queria era ter uma confirmação. Saber se sofrera, ou não. Se ele estava bem.
    Sem ter muito que pudessem fazer, Neuza e Alberto tiveram que se conformar com apenas poder rezar por Gustavo todas as noites (e dias).
    Durante a madrugada, a tempestade piorou muito. Mal se conseguia dormir com o barulho do vento e das trovoadas. Alberto foi retirado da cama, pelo barulho de vidro se quebrando. Ainda meio tonto de sono, e sob efeito de um dos calmantes de sua esposa, fez uma fútil de tentativa de verificar o que era. O máximo que conseguiu fazer foi ir até o corredor, acender as luzes e dar uma espiada. Nada.

* * *

    Nove de dezembro de 1994, sexta-feira, sete e meia da manhã.
    Neuza é acordada pela rajada de ar frio que visita seus pés fora da cama periodicamente.
    A tempestade parece ter melhorado entre a madrugada e a manhã. Ela estranha o vento que vem do corredor, pois com as janelas fechadas, aquele corrente de ar não existiria. Ela abre a porta do quarto, avança pelo corredor e vai até a sala. Ela então descobre o motivo daquele vento todo. O barulho que Alberto ouvira de madrugada tinha sido nada mais do que uma das janelas que tinha o vidro quebrado pela pressão do vento.
    Ela se adianta para avaliar o estrago e ver os cacos no chão, ao lado da estante de livros. Quando dá por si, Neuza está chorando, agachada ao lado dos cacos de vidro da janela. Em seguida, vem Alberto, olha sua esposa na sala, agachada, aos prantos, recolhendo um lírio ainda úmido pela chuva, que aparecia entre os cacos de vidro da janela.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial