sábado, 27 de novembro de 2004

- Historinha para contar aos (seus) filhos -

    A batalha foi violenta. Muitos guerreiros da tribo deram suas vidas para que conseguissem manter o domínio das terras e o direito de caça aos rebanhos de búfalos.
    Muitos da tribo tiveram suas tendas incendiadas, derrubadas e alguns dos pertences pilhados durante a batalha. Mas resistiram e conseguiram expulsar o inimigo com mais baixas do que poderiam imaginar.
    Depois de todo o conflito, restou aos vencedores e sobreviventes a reconstrução do que podia ser reconstruído e o sepultamento dos seus companheiros.
    Outros perderam mais do que as habitações, parentes ou pertences durante a batalha. Alguns foram mutilados e gravemente feridos, comprometendo definitivamente sua saúde e participação na comunidade.
    Contudo, além desses que pareciam ter perdido tudo, havia entre eles alguém que conseguira perder algo mais.
    Lança Cantante era o guerreiro mais endurecido pelas batalhas daquela tribo. Com ele entre as linhas, seus companheiros nunca sofreram uma derrota, e nunca deixaram de vir sem nada após uma caçada. Além de toda bravura, a divina providência lhe concedeu a sorte de nunca ser alvejado, ferido, ou se quer derrubado de seu cavalo em um confronto. Até hoje. Na batalha recente, Lança Cantante perdera a lança herdada por seu falecido pai, o velho líder tribal, Águia Sorridente, partida em algum torso inimigo.
    Completamente desacostumado a lidar com perdas, Lança não se preocupou em juntar-se ao resto da tribo para ajudar a reconstrução de tudo pelo qual defenderam lutando. Procurou se afastar de tudo, montando seu cavalo e partindo para longe. Tentou seguir a primeira estrela que apontava no céu, esforçando-se para tirar de dentro de si a dor que sentia.
    Milhas e milhas ao sul e horas mais tarde, ao pé de um riacho cristalino que cortava um pequeno vale, Lança decide interromper sua jornada. Permitindo que seu cavalo descansasse e bebesse a água tentadora, o jovem guerreiro pôs-se a fazer o mesmo. Saciada a sede, deita-se ao lado de seu cavalo, acende uma fogueira e fica refletindo olhando o céu. Uma noite estrelada, de lua cheia. Uma noite tão perfeita que não era digna dos fatos recentemente ocorridos. E entre o tremular de uma estrela e outro, o guerreiro procurava ler nos céus uma explicação.
    Sem conseguir ver muito sentido no que as estrelas tinham a lhe dizer, o abalado índio, adormece deixando para trás apenas uma fogueira acesa e um dia a ser esquecido.
    Sentado à beira do riacho enevoado, o imbatível tenta achar algum conforto a sua angústia. O guerreiro cede, e chora.
    Vinda de trás, uma voz suavemente diz:
    - Por que choras honrado guerreiro?
    Levado pelos instintos cultivados em inúmeras batalhas, Lança vira para trás bruscamente, ao mesmo tempo em que saca sua faca da cintura.
     - Quem está aí? – ele pergunta.
    E então, da névoa que envolve o ambiente o pequeno vale surge uma coruja, que voa até uma pedra próxima ao índio. A ave pousa. E então, encara o índio por alguns instantes.
    O índio se surpreende com a coruja surgindo do nevoeiro, retribui o severo olhar, mas após constatar que a coruja apenas o observa, ele retoma sua atenção para a suave voz que falava atrás da névoa. Então ele pergunta novamente:
    - Quem está aí?
    - Aí, não, mas aqui. Eu estou aqui. – responde a coruja.
    - Mas como?!
    - Chega de perguntas! – replica a ave imperativamente – Eu faço as perguntas a partir de agora. Eu sou um espírito e vim falar com você. Por que um guerreiro como você, está sentado aqui lamentando ao invés de estar com seu povo, reconstruindo a vida?
    - Nós vencemos a luta, mas eu perdi mais do que estava disposto a perder.
    - E o que foi que você tanto perdeu, guerreiro?
    - Um presente de meu pai.
    - Ora, não seja tolo, criança. Você não perdeu nada.
    - Desculpe-me, espírito, mas perdi sim. A minha lança já estava cravada em um inimigo, quando foi surpreendido por trás por outro. Não tive escolha a usar a lança que me velho pai me deu antes de ir para o seu mundo.
    - Fizeste bem. Se não a usasse, poderia estar junto dele agora. Prematuramente, eu diria.
    - Mas não você não entende, espírito. E eu apenas carregava essa lança para trazer a bravura e a glória do meu pai junto de mim às batalhas.     Essa lança foi feita por meu pai quando ele me ensinou a arte de confeccionar a lança. E foi com ela que ele me treinou para ser o guerreiro que eu sou hoje.
    - E é por esta lança que você lamenta? Não consegues ver?
    - Não é uma lança qualquer...
    - Criança, está com o coração tão pesado que não consegue enxergar além da dor. Como se faz uma lança, guerreiro?
    - Primeiro procuramos por madeira seca e...
    - Pois vejo que sabe muito bem como obter uma nova lança. E quem foi que lhe ensinou isso tudo?
    Neste instante, o guerreiro abandona a expressão de dor de seu rosto, para se ver banhado por lucidez.
    - Agora, eu entendo, espírito. Entendo porque não devo me lamentar. Eu não perdi nada para me lamentar.
    - Muito bem, jovem. Agora que vê o que deves, eu parto para abrir os olhos de outros homens cegos pelo desespero como você.
    Acabando de dizer as palavras a coruja se lança da pedra de volta ao nevoeiro. Quase sem poder mais vê-la, Lança grita:
    - Mas acabou por não me dizer quem você é espírito!
    - Eu sou apenas o que os homens acabam vendo mais cedo ou mais tarde, criança. Uns me chamam de lucidez, outros de clareza, mas gosto de me chamar apenas por Verdade.
    Sentindo o sol esquentar a sua face, Lança cantante desperta com o Sol já alto no céu e seu cavalo ao pastando poucos metros ao lado. Ele se levanta, estica as costas e olha em volta. Pela primeira vez, repara na paradisíaca paisagem à sua volta e sorri. Dirigindo-se ao cavalo, diz:
    - Vamos, meu amigo! Precisamos arrumar madeira seca e firme. Teremos uma lança nova pronta hoje.

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