quinta-feira, 28 de outubro de 2004

- Sabedorias do espelho -

    Não! Eu não vim aqui para falar sobre a esperança de variáveis aleatórias.
    Vim apenas falar de um sentimento que todos podem ter. Uns o dispensam e outros o aproveitam.
    Muita gente gosta de encher o peito de ar para cuspir na cara do mundo como são fortes, e que ter esperanças é coisa de gente tola, fraca e que prefere se iludir ao invés de procurar outro caminho e encarar as coisas nuas e cruas.
    Tenho que vir aqui, me ajoelhar e confessar que já fui uma célula cancerosa dessa legião de cavaleiros em armaduras de vidro. Pessoas que na minha singela opinião preferem se proteger de todo tipo de desvio em suas vidas seja este emocional ou de qualquer outra natureza. Pessoas que não mais riem pelo que riam ontem, que suprimiram a possibilidade de lhes permitir sentir outra coisa que não seja massa dura, petrificada no peito que chamam de coração.
    Até atrevo-me a dizer que essas pessoas sofrem de falta de fé em suas vidas. Acho que a esperança pode ser um sentimento muito saudavelmente cultivado se não ultrapassar a barreira da realidade e fugir para os campos da ilusão.
    Sob aqueles momentos de sofrimento e penúria não é muito difícil deixarmos nossos espíritos e nossa moral ultrapassarem tal barreira e nos arrastar para um feliz e nebuloso mundo de falsa satisfação. Afinal, esta realidade nada mais serve do que para nos fazer sentir vontade de abandonar o próprio corpo por não achar espaço para colocar mais mágoa e desespero nessa casca sem sentido.
    Descartando a perigosa rede de ilusões que podemos ser sufocados, por que não podemos manter esperanças, íntimas ou não, para facilitar nossa realidade?
    Acredito que a esperança possa ser muito aproveitada se a pessoa estiver com o coração bem arado para acolher esse sentimento. É como se você sentisse um carinho por uma coisa que você quer conseguir, alcançar, seja lá qual for seu desejo. Esperança talvez seja um amor que você cultiva por algo que almeja, e que concentra um pouco da sua fé e resistência diária para manter esse amor vivo.
    Aqueles momentos em que você suspira pensando como seria bom ter aquele carro, aquela mulher, aquele emprego ou apenas paz na sua vida, na verdade, talvez nada mais sejam do que uma paquerada na realidade que queríamos estar vivendo. Um flerte no possível amanhã, ou quem sabe depois.
    Talvez ter esperança seja apenas estar apaixonado pelo que você deseja. E não vejo maior motivação para enfrentar o campo de guerra que é essa vida do que estar apaixonado por alguma coisa.
    Portanto, não reprima seus sonhos, sejam os mais antigos, infantis ou secretos. Sonhar é se permitir viver um dia de cada vez, com mais alegria e talvez com cada vez mais sucessos.

segunda-feira, 25 de outubro de 2004

- Historinha para contar aos (seus) filhos -

    Era uma vez um urso que queria uma fruta bem doce. Andando por muito tempo pela floresta ele acha uma amoreira. Mas suas amoras estão verdes. Ele chega perto da amoreira e diz:
    - Dona Amoreira, suas frutas ainda estão verdes. Será que eu um dia vou poder comer frutas bem maduras da sua copa?
    Amoreira responde:
    - Não posso garantir. Mas se for um dia, isso pode levar um certo tempo.
    O urso ponderou inconsolável: "Eu gosto de amoras, e gostei dessa amoreira, mas ela não me parece ter sido tão receptiva ao meu interesse por suas frutas." Ele adiciona:
    - Mas eu quero cuidar muito bem de você, e mesmo assim você não imagina que possa me dar suas frutinhas?
    Para infelicidade sem tamanho do urso, ela ratifica:
    - Não posso te dar garantias.
    Mesmo assim, sem muitas esperanças o urso fica ali cuidando da amoreira, não só por esperar alguma coisa em troca no futuro, mas porque ele realmente gostou dela.
    O tempo passou. E a amoreira parecia inflexível. Nada que o urso fizesse parecia ajudar. Por mais persistente que ele fosse, ele também sentia fome, tinha suas necessidades. Quem não tem?
    Um dia, o urso sentiu o cheiro de uma outra árvore frutífera. Morrendo de fome, ele foi conferir.
    Não era uma amoreira, pra falar a verdade ele nem sabia que árvore era aquela. Os frutos não estavam tão maduros quanto ele gostaria, mas sem dúvida nenhuma, mais amigáveis que as amoras.
    Educadamente o urso perguntou à distinta árvore:
    - Com licença, Dona Árvore. Você se importaria se eu pegasse algumas de suas frutas?
    Ela solicitamente respondeu:
    - Veja bem, minhas frutas estão quase maduras, mas não totalmente. E mesmo assim, nem são tão saborosas assim. Outros animais gostam delas. Mas não comumente, os ursos o fazem.
    - Obrigado pelo aviso, mas estou faminto. Há muito tempo que não como.
    E assim o urso foi comendo aos pouquinhos. De fato, não era o que ele desejava, ele comia aquelas frutinhas azedas e sem graça, pensando como teria sido muito melhor se a amoreira lhe desse o que desejava.
    Mais um tempinho se passou, e uma abelha abelhuda entra nessa história. Uma abelha que ronda os pomares da região, conhece ambas as árvores visitadas pelo urso e ela começa a fazer o que faz de melhor.
    Vendo o urso comendo das frutinhas da outra árvore, a abelha abelhuda não tarda em ir voando à amoreira lhe contar tudo que ela pensa ter visto.
    Horas mais tarde, o urso achando que está satisfeito, volta pro local onde sua querida amoreira está enraizada. Mas ele sabe que não está feliz porque afinal não eram aquelas frutinhas que ele queria.
    Chegando lá pra cuidar de sua amoreira como de costume, o urso nota que a amoreira está menos receptiva que o normal. Ele nota que ela está mais triste e que seus frutos antes verdes, agora estão murchos ou no chão, antes mesmo de amadurecer.
    Sem precisar de muitas explicacões, o urso entende porque sua querida amoreira está tão tristonha. E ele lamenta que ela não queira saber mais dele. Menos ainda do que demonstrava antes.
    O urso, confuso por não saber se a amoreira gostava e deixou de gostar ou ainda gosta dele, se retira derrotado. Ainda tenta alegar que a árvore o está julgando de forma superficial, mas nada disso adianta. Ela está decidida a bani-lo dos seus arredores. Inconsolável, ele tem de aceitar e parte.
    Mesmo estando de longe, e sabendo que talvez não tenha agido da melhor maneira, o urso ainda é fiel aos sentimentos e em pensamentos, não consegue abandonar sua amoreira. Hoje, ele não tenta mais querer cuidar da amoreira, regar suas raízes, arejar sua copa e etc, porque ele respeita a decisão que ela tomou, mas mesmo assim, ele ainda dá uma espiada de vez em quando, bem de longe, pra saber se ela está bem.

sábado, 23 de outubro de 2004

- Historinha para NÃO contar aos (seus) filhos -

    Desci todos os degraus até ao inferno.
    Encontrando o próprio Diabo diante de mim, ele disse:
    - Por que você está aqui? Eu te bani de vez. Não é para você retornar caso não encontre as coisas que o Diabo gosta.
    - But I've found it! Shall we dance?
    Então eu dancei a valsa com o Diabo. Ele riu. Se divertiu como uma hiena sobre uma carcaça fresca.
    Ao fim da música, o inferno inteiro estremeceu quando a criatura de pele vermelha e escamosa soltou uma pavorosa gargalhada. Acrescentou ao fim do estravazamento:
    - Você me foi bastante valioso. Devo te recompensar. O que queres por isso? Tenho muitas almas para ceder-te. Tesouros. Poder. Então servo, o que vai ser?
    - I shall reclaim my throne. I will possess your crown. And the existence will face once more my kingdom and my rules. Die, beast! Die!
    E antes que o diabo pudesse reagir, havia meia espada cravada em seu peito.

quinta-feira, 21 de outubro de 2004

- Pirulito que bate bate -

    Purta qui o paril! Caráleo!
    Tô triste. Vontade de deitar na cama e só levantar quando gritarem: "Levanta! Levanta! Acabou!"

sábado, 9 de outubro de 2004

- As flores falam - Parte Final -

    Dezessete de julho de 1994, domingo, três da tarde.
    - Gu, sua mãe já disse que dentro de casa não é lugar de jogar bola.
    - Mas, pai, tá chovendo. Não posso sair pra brincar. Onde que eu vou brincar? Só aqui mesmo. No meu quarto não tem espaço.
    - E seus outros brinquedos? Não servem pra nada?
    - Ah, brincar com eles não tem graça e meus amigos estão viajando de férias.
    Aquele mês a família não pôde sair de férias em julho. Alberto acabara de ser promovido na empresa e era fortemente recomendado a adiar suas férias em um mês, pois seu novo cargo exigia muita responsabilidade e no momento não havia outra pessoa na firma que tivesse confiança do chefe suficiente para substituir Alberto mesmo que por poucas semanas.
    Entre um chute e um olé, Gustavo chuta a bola contra a parede que sua mãe pendura seus trabalhos de arte. Vários quadros vão ao chão, mas apenas um que continha uma flor feita de pequenos recortes de papel branco tem a moldura quebrada. O som dos cacos alerta sua mãe na cozinha, quem vem depressa verificar o prejuízo.
    - Ai, Gustavo! Quantas vezes eu já falei pra não jogar bola aqui dentro.
    - Ah, mãe.
    - Ah, nada! Já pro seu quarto. Tá de castigo. Olha só! Você quebrou o quadro com o mosaico.
    - Desculpa, mãe. – lamenta Gustavo com quase uma cara de choro.
    - Tudo bem, filho. Um dia mamãe manda consertar. Mas você ainda está de castigo.
    Semanas se passaram, e uma pneumonia da irmã de Neuza, a fez esquecer completamente se algum quadro estava ou não com a moldura quebrada. O mosaico de Gustavo ficou ali, em algum lugar entre o sofá da sala, e a estante dos livros de Neuza.

* * *

    Oito de dezembro de 1994, quinta-feira, oito da noite.
    - Oi, Neuza! É Edna. Não sei se a secretária-eletrônica já está gravando a mensagem, mas de qualquer forma eu ligo mais tarde. Estou ligando pra saber se vai ter a passeata mesmo amanhã com essa chuva toda. Tá um temporal horroroso, e parece que não vai embora tão cedo. Mas se você confirmar, nós aqui de casa iremos. Beijo.
    Neuza não podia atender ao telefone. Estava completamente dopada pelos sedativos que o médico receitara. Ela não podia prever como a proximidade do aniversário de Gustavo iria afetá-la a ponto de não ter ânimo de ir à passeata que estivera planejando. É óbvio que a tempestade contribuíra ao quadro de desânimo de Neuza. Essa chuva praticamente condenara qualquer plano de passeata.
    Sob tamanha derrota e infelicidade tudo que Neuza conseguia fazer era rezar. Ela que nunca foi muito religiosa passou a ser desde o desaparecimento de Gustavo. Depois de quase dois meses, sem nenhuma notícia e reconhecendo a forma como ele foi levado, a pobre mãe praticamente se convencera do destino do filho. Ela acreditava desacreditando que Gustavo já havia partido. Tudo que ela queria era ter uma confirmação. Saber se sofrera, ou não. Se ele estava bem.
    Sem ter muito que pudessem fazer, Neuza e Alberto tiveram que se conformar com apenas poder rezar por Gustavo todas as noites (e dias).
    Durante a madrugada, a tempestade piorou muito. Mal se conseguia dormir com o barulho do vento e das trovoadas. Alberto foi retirado da cama, pelo barulho de vidro se quebrando. Ainda meio tonto de sono, e sob efeito de um dos calmantes de sua esposa, fez uma fútil de tentativa de verificar o que era. O máximo que conseguiu fazer foi ir até o corredor, acender as luzes e dar uma espiada. Nada.

* * *

    Nove de dezembro de 1994, sexta-feira, sete e meia da manhã.
    Neuza é acordada pela rajada de ar frio que visita seus pés fora da cama periodicamente.
    A tempestade parece ter melhorado entre a madrugada e a manhã. Ela estranha o vento que vem do corredor, pois com as janelas fechadas, aquele corrente de ar não existiria. Ela abre a porta do quarto, avança pelo corredor e vai até a sala. Ela então descobre o motivo daquele vento todo. O barulho que Alberto ouvira de madrugada tinha sido nada mais do que uma das janelas que tinha o vidro quebrado pela pressão do vento.
    Ela se adianta para avaliar o estrago e ver os cacos no chão, ao lado da estante de livros. Quando dá por si, Neuza está chorando, agachada ao lado dos cacos de vidro da janela. Em seguida, vem Alberto, olha sua esposa na sala, agachada, aos prantos, recolhendo um lírio ainda úmido pela chuva, que aparecia entre os cacos de vidro da janela.

quinta-feira, 7 de outubro de 2004

- As flores falam - Parte 2 -

    Seis de maio de 1994, sexta-feira, uma e meia da tarde.
    - Oi, mãe!
    - Oi, Gu! Como foi a escola hoje
    - Ah! Nada demais. Ganhei um ponto da professora de matemática II. Ah! E fiz isso aqui pra senhora na aula de artes. - Gustavo tira de uma pasta azul uma folha de papel e entrega pra mãe.
    - O que é isso? - pergunta a mãe, tentando ser mais sensível possível frente o trabalho do filho.
    - É um mosaico, mãe.
    - Eu sei que é um mosaico, Gu. Mas qual é a figura? É uma flor?
    - É, sim.
    - Que flor é essa?
    - É um lírio. Igual aqueles que tem no sítio da vovó. Tá vendo? A flor branca, caule verde...
    - Ah, sim! Ficou muito bonito, Gu. Posso colocar em uma moldura e pendurar na sala?
    - Pode, ué. - respondeu um menino tentando esconder o orgulho.
    - Então vou levar amanhã na vidraçaria e mandar emoldurar. Em dezembro, quando for seu aniversário, sua avó vai adorar ver seus trabalhos de arte da escola.

* * *

    Quinze de novembro de 1994, terça-feira, dez para as sete da noite.
    - Alô.
    - Oi, Neuza. É Edna. Estou ligando para saber se você tem notícias do menino.
    - Não. - responde a mãe, sonoramente abalada.
    - Olha, saiba que nós aqui estamos rezando muito por ele, por você e por sua família, está bem?
    - Obrigada, Edna. Vocês têm sido de um apoio que talvez nunca possa retribuir.
    - Faz um mês hoje, não é?
    - Sim.
    - Vocês estão mesmo organizando uma passeata no aniversário dele?
    - Estamos chamando as pessoas ainda. Quem pode colaborar nós estamos convidando a participar.
    - Que dia é mesmo?
    - Nove de dezembro. No dia mesmo do aniversário.
    - Pode contar conosco. Estaremos todos lá.
    - Obrigada, amiga.
    - Imagine. Bom, tenho que desligar pois a repartição está uma loucura hoje. Você nos faz falta aqui.
    - Eu também sinto falta de vocês.
    - Um beijo. Até logo.
    - Beijo. Até.
    Desde a fatídica noite, Neuza só consegue dormir sob efeito de remédios. Brigas passaram a ser comuns nos dias do casal. Mas Alberto e Neuza reconhecem que a força está na união deles, que neste momento precisam de um do outro, e que unidos conseguem reunir esperança de enfrentar a ausência do seu filho.

quarta-feira, 6 de outubro de 2004

- As flores falam - Parte 1 -

    Quinze de outubro de 1994, sábado, nove da noite.
    Um carro dobra a esquina cantando pneu. As crianças, todas entre dez e quatorze anos, até então brincando de pique, correm para as calçadas. Assustadas, algumas até tropeçam, mas conseguem chegar antes que o carro as atropele. O mesmo carro, um Maverick preto, com rodas de alumínio, desce a rua correndo e some encoberto pelas árvores e a má iluminação do bairro.
    As crianças retomam a brincadeira. Cerca de cinco minutos depois, o Maverick preto corta novamente a diversão dos meninos, para dessa vez desaparecer na esquina superior da rua, de onde viera da primeira vez.
    E pela que seria a última, uma vez mais o imprudente carro preto cruza o caminho dos meninos e interrompe a brincadeira. Um dos garotos incomodado por tantas interrupções propositais decide infantilmente arremessar uma pedra pequena no carro. Acerta de raspão. Sem dano nenhum ao veículo. Mas quase que no mesmo instante o motorista pára. Saltam três homens do carro, aparentemente todos com menos de 20 anos. Cercam um dos meninos na calçada e o interrogam:
    - Quem foi o moleque? Foi você? - pergunta um dos homens desferindo um tapa na cabeça do jovem.
    – Foi ele – acusa inocentemente um dos meninos, apontando o dedo trêmulo na direção de um dos colegas, que tenta correr mas sem a resposta das pernas.
    Os homens se aproximam do menino já aos prantos.
    – Foi você, moleque?
    – Foi...
    - Qual seu nome?
    - Gustavo...
    - Você fez uma coisa muito ruim, Gustavo, e vai ter que acertar as contas comigo.
    – ...
    – Pega ele e põe no carro – disse o motorista aos outros dois delinqüentes.
    – Nãoooooo. - grita Gustavo, enquanto é arremessado no banco traseiro do Maverick.
    Esta noite foi a última vez que os amigos de Gustavo o viram. Foi a noite em que pela última vez as crianças que brincavam na rua brincaram na rua.